Saluzinho, o herói assustador que resistiu ao cerco militar residiu na cidade de Itacarambi


O Demônio é o latifúndio”. Era a frase repetida pelo camponês Salustiano Gomes Ferreira, o Saluzinho, que virou lenda no Norte de Minas após enfrentar sozinho mais de 60 agentes da ditadura militar enquanto se escondia dentro de uma gruta por seis dias. Sua história é destacada no relatório final da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg) como uma das vítimas da perseguição contra trabalhadores rurais que lutavam por terras. Após a resistência, Saluzinho ficou preso no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em Belo Horizonte. Ele virou tema de música da região, e seu nome passou a ser utilizado para amedrontar crianças desobedientes. Na prisão, leu “Grande Sertão: Veredas” e passou a considerar a obra de João Guimarães Rosa como uma narrativa de sua vida pessoal.
Saluzinho era posseiro de um terreno em Serra do Gato, no município de Varzelândia. No dia 17 de novembro de 1967, jagunços do fazendeiro Oswaldo Alves Antunes e policiais militares foram até sua casa para expulsá-lo da terra sem mandado judicial. Com uma espingarda velha, ele atingiu um jagunço e um militar, o que fez os demais desistirem de continuar a expulsão. De um simples camponês sem histórico de envolvimento em atos de resistência à ditadura, Saluzinho se transformou em um dos subversivos mais procurados da região. Com uma garrucha, um revólver 38 e duas espingardas, ele se embrenhou no sertão e se refugiou em uma gruta.
Durante os três primeiros dias de perseguição, 15 PMs fizeram o cerco a Saluzinho. Eles abriram fogo, houve revide e um militar foi ferido. Os policiais tentaram incendiar a gruta com gasolina e, em seguida, usaram dinamite para desmoroná-la, mas Saluzinho resistiu. A perseguição virou notícia no Jornal “O Estado de São Paulo”, e o Dops enviou uma força especializada de 40 homens para prender o camponês.
Eles utilizaram lançadores de bombas de gás por várias vezes, o que também não surtiu efeito. Ao sexto dia de cerco e com ampla cobertura da imprensa nacional, Saluzinho negociou sua rendição. “Ele não tinha confiança em polícia, tanto que a resistência dele foi maior porque ele sabia que, se saísse (da gruta), ia ser assassinado. Então ele batalhou para ter um processo de negociação, para poder não morrer ali. Quer dizer que ele também tinha consciência, e que aquilo era desproporcional”, contou Carlos Melgaço Valadares, que ficou preso no Dops junto com Saluzinho.
Depois de se entregar, o camponês foi colocado na caçamba de um caminhão, que circulou por Montes Claros. Segundo o relatório da Covemg, a polícia exibiu o camponês para mostrar que havia prendido o criminoso mais perigoso do Norte de Minas.
Após a prisão, os jornais passaram a tratar Saluzinho como “comunista, invasor de terras, uma fera, assassino incontrolável que tem prazer em matar”, embora ele não tivesse nenhum envolvimento político. Isso contribuiu para sua história ser contada e recontada na região por anos e ser conhecida até hoje. Porém, essa fama serviu mais para estigmatizá-lo, o que o levou a viver escondido após ser inocentado das acusações e libertado. Saluzinho morreu na miséria em 1990. Em Varzelândia, mães usam seu nome para amedrontar os filhos: “Ô, meu filho, vai pra dentro. A noite, né? Sai da rua, sai da rua, que Saluzinho vem aí, Saluzinho vem aí!”.
109 foram mortos ou “sumiram”
O relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg) revelou que foram mortos ou tiveram o desaparecimento forçado no Estado 109 camponeses durante a ditadura militar. O número é quase 50% maior do que o que havia nos registros anteriores sobre o período: 76 vítimas. Uma característica diferente da repressão na área urbana é que a maioria das mortes no campo aconteceu durante os anos 1980, quando o governo militar estava enfraquecido.
“Tal resultado decorre de vários fatores. O primeiro deles é que, em algumas regiões, o movimento de sindicalização foi retomado mais intensamente nos anos 1980, quando houve diminuição da intervenção do Estado nos órgãos de classe e a organização política ao autoritarismo contestava o poder dos coronéis”, avalia o relatório final da Covemg. Outra hipótese é que a repressão no campo não era denunciada durante a primeira década da ditadura.
Mulher foi torturada para informar paradeiro do marido
Para descobrir o paradeiro de Saluzinho, policiais prenderam sua mulher e posseiros vizinhos, que foram torturados para que indicassem o esconderijo do camponês. Há a suspeita de que a morte de sua companheira tenha sido provocada pelas sequelas do espancamento que sofreu. “O sargento pegou uma tábua de bater sabão, me chamou de sem-vergonha, ladrona (sic) e criminosa e bateu muito em minha mão”, contou à época a mulher do camponês, Dulce Gonçalves Pereira, a um jornal da região.
Na entrevista, ela disse que foi torturada de outra forma, mas que não contaria porque ficaria “avexada”. Mais tarde, seu filho revelou que a mãe teve os mamilos queimados e que sua morte precoce teria ocorrido em razão das sequelas da tortura. Ela morreu quando Saluzinho ainda estava preso. O próprio camponês acreditava que a mulher morrera em decorrência da violência que sofreu. “Ele não teve dúvida em falar que a esposa morreu jovem, ao 42 anos, em função das torturas que sofreu. Ele deu até o nome do médico, Dr. Pedro Santos, de Januária, que a teria atendido antes de ela falecer e teria constatado que ela teve ferimentos graves em função da tortura”, disse à Comissão da Verdade em Minas o ex-assessor sindical Luiz Antonio Chaves, que conheceu Saluzinho.
Apesar dos relatos, a comissão não conseguiu encontrar documentos que pudessem comprovar a causa da morte de Dulce para que ela fosse considerada vítima da ditadura.

MAIS VÍTIMAS
Durval de Souza. Advogado que atuava na defesa de camponeses posseiros, ele foi morto em 1979 por três pistoleiros contratados por fazendeiros de Frutal, no Triângulo.

Pedro Passos. Militante da Liga Camponesa, era perseguido por fazendeiros de Três Marias, na região Central. Teve a casa cercada por um muro, construído por um latifundiário da região, para impedí-lo de usar a estrada até a cidade. A única forma de deixar sua propriedade era pelo rio São Francisco. Foi morto por um militar do Exército enquanto pescava na represa.

Francisca Prata. Camponesa em Carbonita, no Vale do Jequitinhonha, foi morta com dois tiros na cabeça por uma policial ao defender o marido durante um conflito fundiário.

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